Talvez poucos entendam essa história.
Mas eram duas cenas.
Ela estava sentada.
Podia sentir a umidade em torno dela. O ar frio. A coluna reta. A própria respiração era como um escudo em torno de si mesma. Coração de gelo, uma amiga dissera. Queria mesmo que fosse. Bom, tentaria. O desespero já não era tão forte. Sensações de vazio. Vazio que trazia calmaria. Abraçava o vazio pelo que vinha com ele. Calmaria. Calma, coração. Calma, pequena. O olhar estava fixo em um ponto no meio do nada. Na sala escura, tons de fogo vindo das velas acesas. O olhar fixo ao nada. O coração de gelo, partido em dois. Não por ele. Não pelo que acabara faz tempo. Mas pelo que estava prestes a acabar.
E sentada, começou a ver. Essa era a primeira cena.
Começou a assistir a sua história sendo vivida por outras duas pessoas. Começou a ver um alguém que ela tanto amava fazer outra passar pelo que ela passou. É verdade, ele sempre fora assim. Muitas vezes ela rira com ele. Minto. Poucas vezes ela rira com ele de sua canalhice. Nunca fora de aceitar brincadeira com o sentimento de outra pessoa. Nunca lidara bem com mentiras e covardia. Mesmo antes. Mas o aceitava assim. Mas agora, mesmo sabendo que ele sempre fora assim e que ele lhe dedicara tanto tempo de amizade independente de todo o resto, não estava conseguindo assistir aquilo. Era a segunda cena.
Durante muito tempo havia lidado com os nós. Nós que não conseguia desatar. Mágoas que não sabia de onde vinham. Uma amizade que tanto prezava se perdendo. E sem saber o porquê, sofria. Lamentava. Se culpava. O culpava. Cobrava. Soltava. Fez de tudo e continuou sem saber o por que. Não compreendia sua intolerância. Sua raiva. Ele não estava ferindo a ela. Estava ferindo a outra! Mas não aceitava. Não conseguia mais lidar com aquilo e a única coisa que isso causava era distancia entre os dois. Mas sentada, naquela noite, ela percebeu. Aquilo que estava na sua frente. Como não vira antes?
Era a sua história se repetindo diante dos seus olhos. Era o seu querido, o seu amigo, fazendo alguém passar pelo que ela tinha passado. Como aquilo machucava. E simplesmente não conseguia mais ver aquilo.
E entendeu o porquê de toda sua intolerância, de todas as tentativas de mudá-lo, de todas as cobranças, entendeu o motivo de tudo.
Entendeu que perdeu a fé nele. Não sabia se isso tinha acontecido devido às milhares de conversas, brigas, tentativas de fazê-lo agir melhor. Não sabia se tudo isso tinha esgotado sua fé nele. Não sabia se sua fé nele tinha se perdido por causa de suas próprias mágoas, cicatrizes. Não sabia.
Mas não tinha mais fé nele.
E isso é a pior coisa que pode acontecer a alguém. A uma amizade. A um amor. A qualquer coisa. E aconteceu.
E quando todas as cenas chegaram ao fim, sabia que precisava criar outra, em que tudo melhorasse. Sabia e queria. Porque não queria perdê-lo. Queria sua fé de volta. Sua fé nele.
Próxima cena?
Lívia Gurgel