Abriu os olhos, olhou ao redor, estranhou aquela luz entrando
no quarto. Geralmente seu quarto era mais escuro e aconchegante, mesmo pela
manhã. Esquecera-se de fechar a cortina, percebeu. Levantou-se e, após fazer o
que era de costume quando pessoas normais acordam, ligou o computador. O que
também era de costume para ela. Mas ligou o computador e naquele dia, logo
naquele dia, o computador não funcionou. Resolveu então remexer suas coisas e
acabou encontrando seu diário de cinco anos atrás. Talvez tivesse mesmo que
encontrar aquilo. Sentou-se e começou a ler sobre um tempo em que não tinha
tantas coisas que veio a ter depois. E quase se sentiu aliviada, como se fosse
a mesma menina de cinco anos atrás. Sem todas aquelas recordações e perdas que
tinha ao ler aquelas páginas antigas. Mas esse sentimento logo deu lugar a
outro. Dentro do diário estava uma carta de uma amiga. E ler aquelas palavras a
fez ver tantas coisas e ficou a pensar na súplica que sua amiga fizera ao
escrever aquilo. “Como eu não conseguia ser melhor e cuidar melhor de uma
amizade?”
Tinha 14 anos. Apenas 14 anos. E quando a gente tem 14 anos acha que
já tem maturidade, que não vai aprender mais nada, que já sabe tudo, que quando
chegar seu primeiro amor vai ser aquele verdadeiro, que não vai te machucar nem
te deixar. Quando a gente tem 14 anos a gente sente aquele sentimento que ela
sentiu ao ler as próprias palavras, escritas cinco anos atrás. Ficou feliz por
ter percebido que a crise exposta naquela carta fora superada, mas ficou muito
mais triste por perceber, talvez pela primeira vez, como havia sido descuidada
com aquela amizade. Amizade que hoje, cinco anos depois, está mudada,
diferente, por causa da vida mesmo, porque a vida leva algumas pessoas para longe,
inevitavelmente. Mas se perguntou se durante o tempo em que aquela amizade
durou todas as mágoas causadas por ela e todas as suas falhas ficaram de lado e
foram perdoadas pela amiga. Gostaria que a resposta fosse sim. Teve vontade de
procurar a amiga, agora distante, e dizer-lhe que reencontrou a carta, que
mesmo tanto tempo depois, sente muito. Que sente saudades, que espera que
esteja bem e que tenha encontrado uma amiga melhor para ela. Gostaria de dizer
tudo isso, mas sentiu-se tão envergonhada que preferiu ficar calada.
Sentiu-se mais envergonhada ainda ao perceber que mesmo
hoje, cinco anos depois, possui algumas características relatadas pela amiga
naquela carta. Se fossem características boas, pelo menos. Falhas. Falhas
presentes ainda hoje. Sentiu-se aliviada por conseguir reconhecer isso e
decidida a concertar. É o mínimo que pode fazer, por uma outra amizade, já que
não pôde fazer por aquela que talvez nem exista mais. E talvez por isso tivesse
mesmo que achar aquele diário. E ler aquela carta. Para enxergar coisas que não
conseguiria enxergar sem ler aquilo. E sua amiga, ao escrever aquilo, mal sabia
que estaria ajudando-a cinco anos depois. Talvez tivesse mesmo que ver isso em
si mesma naquela tarde. Para cuidar do que ainda pode, como prometera. E isso é
mesmo encantador na vida, não?
Essa é uma das dádivas do tempo. Ensina-nos e nos ajuda a
crescer e a amadurecer. Tempo ou vida? O nome não importa. O que importa nesse
momento para ela é não ser mais indiferente com uma verdadeira amiga, não
pensar, nunca mais, apenas em si própria, embora reconheça que esse defeito já
não é tão presente. Já sabe escutar o outro, pelo menos um pouquinho. Não ousa
dizer que com 19 anos melhorou todos os seus defeitos. É por isso, por essa
maturidade e aprendizado que sente medo, hoje. Porque sabe que sempre há algo para aprender.
E que, geralmente, aprendizados chegam com perdas... Perdas que doem. Medo
também porque sabe que algumas amizades chegam ao fim, mesmo quando parecem
eternas. Não só amizades. Amores. Vidas.
E diante de tudo isso que sabe agora e que não sabia quando
era apenas uma menina há cinco anos, se assusta. Se assusta também ao pensar em
tudo que virá a saber daqui há cinco anos, ao ler essas palavras, quem sabe.
Que Deus a ajude a cuidar deLa. Que o tempo seja generoso.
Tempo ou vida, quem sabe.
Lívia Gurgel
Lívia Gurgel